Nesta entrevista, Mancio compartilha sua visão sobre os desafios e metas para o mercado brasileiro
Com uma trajetória internacional de mais de 20 anos, incluindo duas décadas de atuação junto da multinacional francesa Accor, e posteriormente na Damac Properties, em Dubai, Paulo Mancio assume a direção executiva da área de hospitalidade da CBRE Brasil, uma das maiores empresas de serviços imobiliários comerciais do mundo. Sua chegada acontece em um momento estratégico para o setor hoteleiro brasileiro, que vem registrando um crescimento significativo.
Em 2023, a taxa média de ocupação dos hotéis no Brasil alcançou 60,8%, superando os níveis pré-pandemia, enquanto a diária média teve um aumento de quase 35% em relação ao ano anterior, conforme os registros setoriais, relatados em edições anteriores. Além disso, o setor projeta investimentos de R$ 8,4 bilhões até 2028, totalizando aproximadamente 21.863 quartos, de acordo com o Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil – FOHB.
Nesta entrevista, Mancio compartilha sua visão sobre os desafios e metas para o mercado brasileiro, as tendências que moldam o futuro da hospitalidade, o impacto das novas tecnologias no setor e o avanço do modelo multifamiliar, já consolidado nos Estados Unidos e em expansão no Brasil.
Revista Hotéis - Você assumiu recentemente a direção executiva de Hospitality no Brasil da CBRE, uma das maiores empresas de serviços imobiliários comerciais do mundo. O que o levou a aceitar esse novo desafio profissional?
Paulo Mancio - A CBRE é uma líder mundial no mercado de Real Estate em todas as classes de ativos, atuando nas Américas, Europa e em todos os continentes, incluindo o Brasil. Aqui, temos nove escritórios em capitais estrategicamente posicionadas, oferecendo serviços completos de advisory, ou seja, consultoria imobiliária, além da compra e venda de ativos, sempre gerando qualidade e valor. Com uma empresa de governança sólida e presença no Brasil há 45 anos, visualizei uma grande oportunidade de desenvolvimento e de lançar a divisão de hospitality no mercado brasileiro. Não apenas para a compra e venda de ativos e consultoria no setor hoteleiro, mas também para branded residences, multifamily e multipropriedades. Foi uma chance de crescimento e de estabelecer uma nova divisão desde o início, contando com todo o suporte de uma empresa multinacional e já consolidada no Brasil.
R.H. - O que você traz de bagagem profissional e experiência para contribuir com o crescimento da área de Hospitality da CBRE?
P.M. - Minha experiência internacional de 20 anos foi essencial, passando por diferentes fases da Accor, desde os tempos em que eram operados hotéis próprios até o modelo de management contract e, posteriormente, a evolução para uma abordagem focada em franquias. Durante esses três grandes ciclos, a empresa cresceu significativamente, ampliando o conhecimento sobre novas marcas, abordagens ao cliente e estruturas de financiamento para projetos. Ao me desligar da Accor no final de 2022 e seguir para Dubai, adquiri uma experiência intensa em Real Estate, especialmente em projetos residenciais que incorporam serviços hoteleiros. No mercado de Dubai, o foco está em agregar valor ao Real Estate, impactando o VGV (Valor Geral de Venda) e os KPIs relevantes tanto para investidores quanto para compradores finais. Trabalhei na maior incorporadora de Dubai, a DAMAC, com projetos nos Emirados Árabes e em países como Itália, Espanha e Estados Unidos. Essa vivência me trouxe uma visão ampliada sobre hospitalidade e como gerar valor no setor.
“Minha experiência internacional de 20 anos foi essencial, passando por diferentes fases da Accor, desde os tempos em que eram operados hotéis próprios até o modelo de management contracts”
R.H. - Quais são seus planos na liderança da área de Hospitality da CBRE? Quais metas e objetivos pretende atingir?
P.M. - A CBRE tem uma governança muito bem estruturada e é uma empresa sólida, com mais de 300 anos de história, respeitando seus colaboradores, investidores e stakeholders. Queremos crescer ainda mais no segmento de forma consolidada e conquistar mercado na área de hospitalidade. Meu papel é liderar esse segmento no Brasil e, eventualmente, expandi-lo para a América Latina.
Nossa área de pesquisa é um diferencial. Poucas empresas no mundo possuem um setor de pesquisa tão robusto, com profissionais qualificados que fornecem informações detalhadas sobre o mercado imobiliário. Esse trabalho é essencial para nosso planejamento e crescimento no setor de hospitality.
“A CBRE tem uma governança muito bem estruturada e é uma empresa sólida, com mais de 300 anos de história”
R.H. - Como foi sua experiência profissional na DAMAC Properties, em Dubai, e como isso impactou sua visão global da hotelaria?
P.M. - Dubai proporciona uma experiência profissional intensa, cercada pelos melhores profissionais do mundo. Os Emirados Árabes atraem talentos devido à escala e aos níveis de investimento, proporcionando aprendizado constante. Os projetos em Dubai são grandiosos, com alto padrão de design e qualidade arquitetônica, o que sempre me atraiu. Nos Emirados, a hotelaria é vista como um complemento essencial ao Real Estate, agregando valor aos empreendimentos e impactando diretamente seus resultados financeiros.
R.H. - A pandemia trouxe mudanças profundas para diversos setores, incluindo a hotelaria. Como você avalia a recuperação do setor e quais fatores indicam um novo ciclo de desenvolvimento para o mercado hoteleiro no Brasil?
P.M - É evidente que, ao sairmos da pandemia, todos os mercados passaram por profundas transformações e se adaptaram a um novo cenário. A hotelaria não foi exceção e sofreu impactos significativos. Atualmente, vivemos um momento especial, pois o ciclo de desenvolvimento esperado para os anos de 2021, 2022 e 2023 não ocorreu.
Hoje, há uma demanda crescente no mercado nacional, atingindo índices próximos a dois dígitos, em torno de 10%. Em alguns subsegmentos, como o mercado upscale e de luxo, esse crescimento chega a 14% ou 15%. Isso indica que estamos à beira de um novo e relevante ciclo de desenvolvimento.
É essencial analisar um cenário em que a taxa de ocupação aumentou, seguida pelo crescimento da diária média e do consumo nos hotéis. Como consequência, a hospedagem tornou-se relativamente mais cara. Esse é um indicador crucial: quando há um aumento expressivo na demanda sem uma correspondente expansão da oferta, surgem sinais claros para que investidores enxerguem essa oportunidade e iniciem novos investimentos no setor.
R.H. - A tecnologia desempenha um papel fundamental nesse novo mundo da hospitalidade. Que experiências você vivenciou em sua jornada de trabalho no exterior e o que pode ser aplicado no Brasil?
P.M - Sempre fui um admirador de inovações e tecnologia, buscando soluções e uma nova visão para os mercados. Não tenho a menor dúvida de que estamos na era da inteligência artificial, com diversas frentes onde essa tecnologia pode melhorar os friction points, os pontos de fricção entre o cliente e o hotel, entre o cliente e o residencial, ou mesmo em um edifício de multifamily. Isso é fundamental.
Vejo a inteligência artificial não apenas como uma boa prática, mas como algo absolutamente necessário para otimizar diversos segmentos. Vou dar alguns exemplos: a IA pode mitigar ou aprimorar processos repetitivos, permitindo que a operação do hotel se concentre em aspectos exclusivos da experiência do cliente. Dessa forma, as tarefas rotineiras não consomem o tempo da equipe alocada, permitindo que os colaboradores se dediquem a proporcionar momentos de fato especiais para os hóspedes. Acredito na inovação por meio da conectividade e na criação de hotéis cada vez mais modernos e versáteis. Além disso, defendo que um hotel deve ter conexão com a localidade em que está inserido. Os hotéis não podem ser genéricos. O conceito de standard deve ser bem equilibrado, e sou defensor da ideia de que um projeto deve ser pensado de forma inteligente: o Back of the House precisa ser altamente eficiente, onde a inteligência artificial pode ser aplicada de maneira mais estratégica, enquanto o Front of the House deve estar completamente alinhado com a identidade do destino, pois essa é uma expectativa essencial para o cliente.
“Os hotéis não podem ser genéricos. O conceito de standard deve ser bem equilibrado, e sou defensor da ideia de que um projeto deve ser pensado de forma inteligente”
R.H. - No pós-pandemia da COVID-19, o comportamento dos hóspedes mudou significativamente, com um foco maior em experiências personalizadas. Esse é o futuro da hotelaria? Qual é a sua análise?
P.M - É evidente que o cliente pós-pandemia, que passou por um momento extremamente crítico e, em muitos casos, traumático, tem expectativas elevadas e, muitas vezes, um nível de paciência reduzido. Por isso, é fundamental que suas expectativas sejam plenamente atendidas e que tudo o que lhe é oferecido seja autêntico. Ou seja, as ofertas nos edifícios de hospitalidade e nos hotéis devem, de fato, ser entregues de maneira consistente e relevante para o hóspede. Assim, o projeto deve ser bem planejado, realmente capaz de proporcionar uma experiência única, da porta para dentro, e não apenas na teoria.
Além disso, essa entrega precisa ter uma conexão real com a localidade. O cliente que chega a São Paulo, por exemplo, quer vivenciar o frisson paulistano, compreender a dinâmica da cidade e não se sentir imerso em uma realidade artificial, algo que não traz a leitura da cidade, do bairro, das características locais, para o hóspede. O mesmo ocorre com quem viaja para Salvador, na Bahia, ou para o Rio de Janeiro – ele quer absorver a essência do ambiente carioca e sentir a autenticidade do destino.
Outro ponto essencial é a relação do hóspede com o tempo. Cada vez mais, o tempo se torna um recurso escasso na vida das pessoas ativas no mercado de trabalho. Embora a tecnologia proporcione maior mobilidade, também exige mais tempo. Assim, os momentos livres são reduzidos, e, muitas vezes, esse tempo de lazer ocorre dentro do hotel, tornando sua experiência ali ainda mais valiosa.
Nesse contexto, a infraestrutura oferecida deve ser de alto nível. Ter uma academia, por exemplo, não basta; é necessário que ela seja bem equipada. Se um hóspede encontra uma academia com apenas três esteiras e todas estão ocupadas, isso pode ser um fator de insatisfação e motivo de reclamação. Portanto, a oferta de serviços precisa ser altamente qualificada e quantificada, para que não existam falhas na qualidade da experiência dos hóspedes.
Tenho certeza de que a hotelaria do futuro estará cada vez mais conectada às características e culturas locais, oferecendo um produto autêntico e uma experiência genuína, sem negligenciar a tecnologia. Esta, por sua vez, terá um papel mais relevante no Back of the House, mas também será essencial no Front of the House, auxiliando o usuário na resolução de friction points. Sabemos que um dos principais friction points na hotelaria envolve o check-in e o check-out – processos que frequentemente geram problemas. Filas demoradas, chaves de acesso que não funcionam e outros contratempos que consomem mais tempo do que o esperado pelo cliente devem ser resolvidos. O futuro da hotelaria precisa proporcionar uma experiência fluida, garantindo uma client journey mais suave e satisfatória.
“Tenho certeza de que a hotelaria do futuro estará cada vez mais conectada às características e culturas locais, oferecendo um produto autêntico e uma experiência genuína, sem negligenciar a tecnologia”
R.H. - O multifamily é um mercado maduro nos Estados Unidos, mas ainda está em fase inicial no Brasil. Como a CBRE enxerga essa oportunidade?
P.M. - A história do Multifamily teve origem nos Estados Unidos e, hoje, é uma classe de ativos que está em plena expansão no país. Além disso, vem se desenvolvendo de forma significativa na Europa e em mercados maduros. No Brasil, esse modelo chegou forte, ainda que em menor escala, representando empreendimentos imobiliários voltados para locação, e não para venda, como ocorre em incorporações tradicionais.
Quando operado de forma disciplinada, esse modelo permite a criação de um fluxo de caixa estável, garantindo previsibilidade na operação dos edifícios residenciais. Esses empreendimentos oferecem unidades com determinados serviços já incluídos, tornando-se uma solução atraente para diversos perfis de público.
Outro fator que impulsiona o Multifamily no Brasil é a crescente escassez de terrenos nas grandes cidades. O desenvolvimento imobiliário está cada vez mais limitado, com terrenos mais caros e, consequentemente, imóveis com preços elevados. Diante desse cenário, a locação se apresenta como uma alternativa viável, permitindo que as pessoas optem por um modelo financeiro mais flexível, sem a necessidade de um grande desembolso inicial para a compra de um imóvel.
Em grandes metrópoles dos Estados Unidos, como Nova York, esse formato já é amplamente consolidado. No Brasil, especialmente em São Paulo, o Multifamily tem se destacado com projetos de médio e longo prazo (medium and long stay), que atendem executivos que precisam permanecer no país por períodos de três a seis meses. Esses profissionais não buscam um apartamento grande, mas também não querem ficar em um quarto de hotel todo este período.
O Multifamily atende exatamente essa necessidade, oferecendo apartamentos mobiliados, com serviços agregados, segurança e estrutura de concierge. Assim, os moradores encontram uma solução pronta desde o primeiro dia, o que justifica o pagamento de um prêmio por esse tipo de conveniência. Esse modelo tem ganhado cada vez mais força no Brasil, e a CBRE está fortemente posicionada nesse mercado. Inclusive, somos a única empresa do setor com uma pesquisa estruturada e exclusiva sobre a classe de Multifamily no país.
“O Multifamily atende exatamente essa necessidade, oferecendo apartamentos mobiliados, com serviços agregados, segurança e estrutura de concierge”
R.H. - Em sua opinião, quais são os principais gargalos que impedem o crescimento do setor hoteleiro no Brasil? A falta de linhas de crédito limita o setor? Com isso, o modelo condo-hotel continuará sendo a principal alavanca para novos empreendimentos?
P.M - Embora o Brasil seja constantemente apontado como uma grande promessa para o turismo internacional, ainda existem desafios que precisam ser superados para que o capital chegue de forma mais acessível e favorável ao setor. O primeiro ponto está relacionado às linhas de financiamento adaptadas às características da hotelaria. O segmento de hospitality opera de maneira muito distinta de outros ativos imobiliários, como escritórios, onde os aluguéis seguem um fluxo previsível. No caso dos hotéis, a ocupação é variável, exigindo um modelo de funding adequado a essa dinâmica. Portanto, é essencial que existam mecanismos financeiros que compreendam essas particularidades e viabilizem novos investimentos.
Além disso, fatores estruturais também são fundamentais para impulsionar o crescimento do setor. Segurança e infraestrutura são aspectos críticos, e é essencial que o país continue investindo na modernização e construção de aeroportos, bem como na ampliação da malha aérea, para atrair mais turistas.
Recentemente, o Brasil registrou um número expressivo de quase 7 milhões de viajantes internacionais. Sobretudo, é importante considerar o enorme potencial do turismo interno. O país, com suas dimensões continentais, tem um mercado doméstico com cerca de 90 milhões de viajantes em potencial. Esse público precisa ser levado em conta ao analisar a viabilidade de novos empreendimentos hoteleiros. Esses três fatores – financiamento adequado, melhorias na infraestrutura e valorização do turismo interno – são fundamentais para acelerar o desenvolvimento de novos hotéis e fortalecer a hospitalidade no Brasil.
“O país, com suas dimensões continentais, tem um mercado doméstico com cerca de 90 milhões de viajantes em potencial”
R.H. - Em relação à multipropriedade, como você enxerga o setor, as oportunidades e como pretende alavancar a atuação da CBRE nesse segmento?
P.M - O setor de multipropriedade, internacionalmente conhecido como fractional ownership, é uma das classes de ativos sob nossa responsabilidade na área de hospitality da CBRE. Ele apresenta oportunidades bastante específicas e, para determinados empreendimentos, pode ser extremamente promissor.
Muitas pessoas não precisam ou não têm disponibilidade para utilizar uma propriedade durante períodos mais longos. Na prática, a legislação trabalhista permite, no máximo, quatro semanas de férias, o que torna a multipropriedade uma solução muito inteligente para o turismo de lazer. Esse modelo permite que o comprador tenha acesso a um imóvel por um período determinado – seja duas, três ou quatro semanas por ano –, podendo, em alguns casos, contar com sistemas de intercâmbio de propriedades para usufruir de experiências em diferentes destinos.
“Na prática, a legislação trabalhista permite, no máximo, quatro semanas de férias, o que torna a multipropriedade uma solução muito inteligente para o turismo de lazer”
Por outro lado, do ponto de vista imobiliário, a multipropriedade pode ser uma estratégia muito vantajosa para incorporadores e investidores, onde, obviamente seu sucesso depende de um estudo aprofundado para avaliar sua viabilidade em cada empreendimento. Para isso, a CBRE conta com um time especializado que analisa se essa solução se adequa a determinado projeto, considerando o contexto do mercado brasileiro.
Por fim, reforço que a CBRE, líder global no setor imobiliário, está expandindo sua atuação na hospitalidade no Brasil, estruturando-se fortemente em quatro subáreas: hotéis, multifamily, multipropriedade e branded residences (residenciais com marca). Contamos com uma equipe preparada para interagir com investidores, proprietários e operadores hoteleiros, oferecendo pesquisa de mercado, consultoria estratégica, soluções financeiras e acesso a funding, graças à nossa relação consolidada com fundos de investimento e investidores institucionais. Nosso compromisso é apoiar esse mercado com serviços de alta qualidade, tanto em advisory quanto em transações imobiliárias.