A cidade conta atualmente com 18 mil leitos, mas receberá cerca de 55 mil visitantes, fazendo com que os preços das diárias disparassem, o que está inviabilizando a vinda de várias delegações internacionais
Restando poucos dias para a realização da COP30 - 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que acontece de 10 e 21 de novembro de 2025, a capital paraense vive uma verdadeira corrida contra o tempo para os preparativos. As obras de infraestrutura, financiadas pelos governos federal, estadual e municipal estão em ritmo acelerado e dentro do cronograma previsto. Estão sendo investidos um total de R$ 4,5 bilhões que contempla uma série de obras, como a modernização do Complexo Ver-o-Peso, a inauguração do Mercado de São Brás, a implantação de novas vias e corredores de transporte, como a finalização do BRT Metropolitano (sistema de ônibus rápidos em pistas exclusivas), assim como obras de saneamento e mobilidade urbana. A maior obra será o Parque da Cidade, uma área de 500 mil m² que será o epicentro das negociações. O espaço foi projetado para abrigar tanto a Zona Azul, destinada às negociações oficiais da ONU, quanto a Zona Verde, aberta à sociedade civil.
Se por um lado as obras avançam, por outro a capacidade hoteleira segue como um dos principais gargalos. Atualmente, Belém conta com cerca de 18 mil leitos, número muito inferior à expectativa de público, que pode chegar a 55 mil pessoas entre chefes de Estado, negociadores, cientistas, jornalistas e ativistas. Com o cronômetro ligado para o início do evento, as esferas municipais, estaduais e federal travam uma verdadeira batalha para resolver o imbróglio da falta de hospedagem, algo que já deveria ter sido planejado, pois houve bastante tempo para isso. O Brasil havia sido indicado para sediar a COP30 em Belém no dia 11 de dezembro de 2023, em sessão plenária da COP 28, realizada em Dubai. A confiança de que Deus é brasileiro, um povo de muita fé, sempre se dá um jeitinho para resolver as coisas no Brasil e confiante que a iniciativa privada fosse resolver a questão de hospedagem, emergiu um grande gargalo. Mas a iniciativa privada sofreu no bolso na Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2026, e aprendeu que construir uma grande quantidade de hotéis para atender a um evento, a conta depois não fecha. E se não existe investimento público e nem privado suficiente na construção de novos hotéis, fica a pergunta que não quer calar: Onde ficarão hospedados cerca de 55 mil visitantes esperados se Belém só tem capacidade atualmente para 18 mil leitos?
O que se tem de concreto de novos leitos são três hoteis que estão em construção. O antigo prédio da Receita Federal, centro histórico de Belém, está passando por uma ampla reforma para sediar o hotel Tivoli Maiorana que ofertará 180 apartamentos de luxo. Nos armazéns históricos do Porto Futuro II, a rede portuguesa Vila Galé acelera as obras para entregar o Vila Galé Collection Amazônia, que ofertará 206 apartamentos. E em Castanhal, região metropolitana de Belém, acaba de entrar em operação o Bristol Castanhal Hotel, que oferta 140 apartamentos. Somando que cada apartamento desses novos hotéis consegue acolher dois hóspedes, haverá mais 1.052 leitos que junto com os 18 mil leitos existentes, elevará a capacidade de Belém para 19.052. Mas há poucos dias do início da COP30 ainda faltam 35.948 leitos.
Obras de infraestrutura, como a nova doca, estão em ritmo acelerado em Belém para atender a COP30 (Foto - Raphael Luz / Agência Pará)
A conta de leitos não vai fechar
Para reduzir esse déficit, o Governo articula uma série de medidas. Com o sinal vermelho aceso, a expectativa das autoridades é suprir essa necessidade com 25 mil leitos através de plataformas digitais e casas. Serão adaptadas várias escolas públicas, espaços das Forças Armadas e com isso, o Governo espera conseguir mais 10.500 leitos. Dois navios de cruzeiro, o MSC Seaview e o Costa Diadema, foram contratados para a COP30 em Belém, oferecendo aproximadamente 3.900 cabines e capacidade para até seis mil leitos. Os navios ficarão atracados no Terminal Portuário de Outeiro, que está sendo revitalizado para a COP30, e terão uma nova ponte para facilitar o acesso aos locais oficiais do evento. O governo reservou R$ 259 milhões para garantir o serviço dos navios por 17 dias, caso não haja ocupação suficiente pelas delegações.
Uma outra solução para o aumento de número de leitos para a COP30 partiu do SEBRAE/PA - Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Pará com a construção de domo geodésico, suítes de luxo, inspirada nas formas da Amazônia implantadas na Ilha do Combu, um dos destinos turísticos mais visitados da região de Belém. Entre as vantagens desse tipo de solução estão o custo reduzido e atenção ao conforto térmico, acústico e acessibilidade. Os materiais utilizados mantêm a temperatura interna estável, reduzindo a necessidade de aquecimento e refrigeração artificiais. Versáteis e replicáveis, as soluções também oferecem possibilidades diversas, que vão desde a montagem de um quarto isolado no meio da floresta até um condomínio de suítes — com todo tipo de serviço agregado para os turistas —, econômicas ou luxuosas, dependendo do público-alvo e localidade. Existe ainda o hotel COP30 (Vila Líderes / Vila COP30), um complexo de seis blocos com dois pavimentos, sendo cinco destinados às 405 suítes, além de uma torre central de serviços com recepção, lobby, back-office, bar-café, restaurante, quiosques de artesanato/souvenirs, duas salas de reuniões, conveniência e academia.
Perspectiva do Hotel Vila de Líderes que está sendo construído na Vila COP30 (Foto - Divulgação)
Risco de vexame internacional
Mesmo com todos esses esforços de última hora para garantir leitos suficientes para os visitantes da COP30, a conta não vai fechar. As críticas internacionais sobre abusos de preços ecoam cada vez mais. O custo da hospedagem tem preocupado delegações estrangeiras e organizações da sociedade civil. Países em desenvolvimento e o Grupo de Negociadores Africanos já manifestaram temor de que o alto preço das diárias possa reduzir a presença de representantes. Até mesmo países europeus, como Holanda e Polônia, cogitam enxugar suas delegações e o Presidente da Áustria afirmou que não virá ao Brasil por causa dos altos custos. Diante da pressão, a ONU – Organização das Nações Unidas chegou a convocar uma reunião emergencial para discutir o tema. E até mesmo fortes pressões para mudar o local da COP30 estão sendo articuladas. Em carta aberta publicada no dia 12 de agosto, o Observatório do Clima, maior rede de ONGs da agenda climática do Brasil, criticou o que chamou de “negligência” do Governo Federal e estadual do Pará na preparação da COP30, em novembro. O Observatório afirmou que há risco de ser a COP “mais excludente da história”, com a redução de delegações por causa dos altos preços de hotéis e que há risco de um “vexame histórico” para o País, pois o que os hotéis estão fazendo em relação ao aumento de preços é extorsão.
Antônio Santiago: “Muito se fala de abusos de diárias e isso acaba recaindo na hotelaria, sendo que na verdade os grandes vilões são as plataformas de hospedagem” (Foto - Divulgação)
Crítica injusta a hotelaria tradicional
Antônio Santiago, Presidente da ABIH/PA - Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do Pará, mais conhecido como Tony Santiago, diz que essas críticas com a hotelaria tradicional são injustas. “Muito se fala de abusos de diárias e isso acaba recaindo na hotelaria, sendo que na verdade os grandes vilões são as plataformas de hospedagem. Muitos inquilinos, até incentivados pelo SEBRAE que promoveu cursos incentivando o ingresso nas plataformas, criaram uma expectativa irreal do evento. Viram uma falsa oportunidade de mudarem de vida, fazendo com que os preços disparassem. Com a chegada, até tardia, da plataforma da ONU, os preços já começam a cair para um padrão aceitável”, revela Santiago.
Ele lembra que a ABIH/PA foi procurada já muito tardiamente pela secretaria da COP30 e foi informado a eles que Belém dispunha em torno de 18 mil leitos. E que com a inauguração prevista de mais sete hotéis, esse número deveria passar para 22 mil leitos. “Num determinado momento ‘no meio do jogo’, o que eram 50 mil leitos necessários para atender a demanda da COP30 passaram para quartos, já que os delegados da COP30 não estão dispostos a dividir apartamentos. Isso gerou um novo problema, pois agora os hotéis não dispõem mais de 22 mil leitos e sim sete mil quartos. Com a falta de leitos agravadas pela lei de oferta e procura, fomos procurados pelo governo do Estado para num esforço coletivo. O objetivo é que arrumássemos junto aos nossos associados 500 quartos com tarifas entre 100, 200 e 300 dólares afim de atender as delegações ‘menos favorecidas’ da África e Oceania. Nossos associados no sentido de parceria com o evento, imediatamente ofereceram 530 quartos em hotéis 4 e 5 estrelas nesses valores. Sendo que metade foram tarifa de 100 dólares. Creio que com isso, demos nossa colaboração. A diária média para a COP30 está em média de 700 dólares com taxa de ocupação em torno de 90%. Isso mostra que as tarifas não estão fora da realidade para um grande evento internacional desse porte”, concluiu Santiago.
Plataformas de aluguéis por temporada são os grandes vilões?
Alexandre Sampaio, Presidente da FBHA - Federação Brasileira de Hospedagem e Alimentação, também expressa preocupação com a prática de preços exorbitantes de hospedagem na cidade de Belém (PA) para sediar a COP30. A FBHA aponta que plataformas de aluguéis privados e a oferta indiscriminada de imóveis para temporada têm sido os principais catalisadores do aumento abusivo de valores. “Nós participamos de reuniões com o governo local e organização do evento. Nesses encontros, foi alinhado um TAC - Termo de Ajustamento de Conduta para o setor hoteleiro, o que garantiu que os hotéis entregassem 20% dos leitos a preços definidos pelos organizadores, ou seja, com valores acessíveis. Portanto, os hotéis formais se dispuseram a colaborar com esta solução. Os contratos estão firmados e os hoteleiros estão comprometidos em respeitá-los”, explica Sampaio.
Alexandre Sampaio: “A falta de regulamentação para o aluguel de casas e apartamentos por plataformas digitais é o principal fator que impulsiona a especulação” (Foto - Marcelo Freire)
A Federação reforça que, embora Belém tenha um grande atrativo turístico por sua localização na Amazônia, a infraestrutura hoteleira não é suficiente para a grandiosidade da demanda gerada pela COP30. Essa lacuna, segundo a FBHA, tem sido explorada por plataformas de aluguéis por temporada, que operam sem a mesma regulamentação do setor hoteleiro e praticam reajustes de preços desproporcionais. “Os hotéis oferecem reajustes compatíveis com a demanda disparada pelo evento - o que acontece naturalmente em qualquer lugar, e todos que fecharam e contratualizaram estão ali já acordados. Nosso setor trabalha com planejamento e previsibilidade. A falta de regulamentação para o aluguel de casas e apartamentos por plataformas digitais é o principal fator que impulsiona a especulação”, conclui Sampaio. Os altos preços levaram a Defensoria Pública do estado do Pará a notificar plataformas de hospedagem para a exclusão de anúncios com preços abusivos durante a conferência. Mas as plataformas alegam que são meras intermediadoras, pois quem define os preços são os anfitriões e não são culpadas de toda essa especulação de hospedagem.
Ponto de vista jurídico em relação aos abusos
Em meio às denúncias de diárias multiplicadas em até 1.000%, a Jurista Débora Farias, especialista em Direito do Consumidor, alerta que o cenário pode configurar infração coletiva com repercussões judiciais para o setor hoteleiro brasileiro. “Estamos diante de uma combinação perigosa entre desorganização, oportunismo e ausência de regulação preventiva. Isso não só fere os princípios do CDC - Código de Defesa do Consumidor, como coloca em risco a imagem do País perante a comunidade internacional”, explica Débora. Segundo ela, a conduta de precificação abusiva em períodos de alta demanda é coibida pelo próprio CDC, que veda aumentos sem justa causa e protege o consumidor contra práticas que configurem vantagem excessiva ou desequilíbrio contratual. “O fato de haver um evento internacional em Belém não autoriza que se transforme a estadia em um verdadeiro leilão de desespero. Essa é uma forma disfarçada de extorsão, que pode levar à judicialização em massa”, alerta Débora.
Débora Farias: “Estamos diante de uma combinação perigosa entre desorganização, oportunismo e ausência de regulação preventiva” (Foto - Divulgação)
Além do aumento desproporcional nas diárias, há relatos de cancelamentos unilaterais de reservas feitas com antecedência, para que os estabelecimentos possam revender os quartos a preços muito superiores. Débora afirma que a prática é ilegal e fere o princípio da boa-fé objetiva, gerando direito à reparação por danos materiais e morais aos consumidores lesados. “A legislação brasileira já prevê mecanismos para coibir esse tipo de conduta. O que falta é fiscalização e denúncia por parte dos órgãos competentes e consumidores. Se houver omissão, a consequência pode ser o ajuizamento de ações coletivas, inclusive por entidades internacionais de defesa do consumidor”.
Para evitar que todo o setor seja penalizado pela conduta de poucos, Débora Farias reforça que as entidades representativas da hotelaria e do turismo precisam agir com urgência. “Os hotéis e pousadas que atuam de forma ética devem liderar esse movimento, exigindo transparência e responsabilização dos que distorcem o mercado. É uma questão de autorregulação e sobrevivência reputacional. A lição para o Brasil é clara — precisamos antecipar mecanismos de regulação e fiscalização em eventos internacionais, para garantir segurança jurídica, proteger o consumidor e preservar a imagem do País”, conclui Débora.
Princípio básico do marketing
Lilian Carvalho, PhD em Marketing, professora da FGV/EAESP e coordenadora do Centro de Estudos em Marketing Digital, enfatiza que as estratégias de preços de diárias deveriam ser feitas por profissionais do marketing, e não por economistas e especialistas em finanças e explica o porquê. “Ainda na década de 1960, Philip Kotler já destacava que, dentro da lógica dos ‘4 P’s do Marketing’ – Preço, Praça, Produto e Promoção – o ‘Preço’ não deve ser baixo a ponto de não produzir nenhum lucro, porém, jamais deve ser tão alto a ponto de não permitir qualquer demanda. E é isso que está acontecendo com o setor de hospedagens em Belém. Voltando à economia tradicional, considerando a lei da oferta e da demanda, ao traçar a linha de tendência é possível observar que esse preço pode subir infinitamente. Porém, na vida real, isso não é aplicável! Chegamos ao ponto de demanda de 0, pois ninguém pode – ou não quer – pagar preços que extrapolam tanto o bom senso. Cabe destacar aqui que a origem do problema não está nos donos de hotéis e outros tipos de hospedagens que colocaram os preços nas alturas. Os responsáveis, sem dúvidas, são aqueles que tiveram a brilhante ideia de definir uma sede para a COP30 sem a devida estrutura necessária para suprir a demanda. Mas afinal, o mercado não se autorregula? Se regula, inclusive pedindo para trocar um evento global de uma cidade para outra. Essa é uma consequência inevitável da falta de planejamento”, criticou Lilian.